Tuesday, April 24, 2007

O melhor discurso que eu ouvi sobre o 25 de abril .

Proferido dia 25 de Abril de 2004, nos trinta anos da revolução, pelo deputado Francisco Louçã.

O Sr. Presidente: —Para proferir uma declaração em nome do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda, tem a palavra
o Sr. Deputado Francisco Louçã.
O Sr. Francisco Louçã (BE): — Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Presidente da República de Timor Leste, Sr.as e Srs. Convidados, Sr.as e Srs. Membros do Governo, Sr.as e Srs. Deputados, meus caros Capitães de Abril: Há muito mais de 100 anos, o poeta Antero de Quental, fundador da corrente socialista em
Portugal, explicava que as causas da decadência dos povos peninsulares eram, em primeiro lugar, o papismo fanático, que tinha criado a Inquisição e amarfanhado a educação; em segundo lugar, o colonialismo, que tudo consumia; e, em terceiro lugar, o absolutismo, que bloqueava o desenvolvimento.
Portugal vivia, dizia Antero de Quental, um «adormecimento sonambulesco em face da revolução do século XIX» e,
assim, proibia-se de compreender que «o nome do espírito moderno é a revolução».
Era Antero blasfemo, romântico, santo? Era simplesmente moderno.
Mas o poder, beato, colonialista, autoritário, não acompanhou a revolução da modernidade do século XIX, nem sequer
a do século seguinte – foi só com o 25 de Abril que chegámos ao século XX.
Há 30 anos, Portugal viva embrenhado na tristeza. Isolado da Europa, era um País provinciano e tacanho.
As ideias sufocavam, as mulheres eram mandadas obedecer, os audazes emigravam, os jovens morriam na guerra, os pobres desesperavam, os remediados aborreciam-se, os ricos enriqueciam. Os que se opunham eram presos e perseguidos.
Os poderosos é que marcavam este País. Viviam à sombra da ditadura, como sempre virados para o passado: recebendo o ouro do Brasil, primeiro, os dinheiros de África, depois, as prebendas e mordomias garantidas pela mão protectora de Salazar, finalmente.
O parasitismo foi a marca genética dessa burguesia patética que abominava a mudança, atracada num Império megalómano.
Essa elite, nada e criada contra a revolução da modernidade, pasmada num tempo que nunca passava, foi a obreira da decadência de Portugal.
Contra essa elite, contra a sua ditadura que era incapaz de evoluir, pois seria a sua morte, a democracia só poderia nascer revolucionária. E assim foi.
Quem sabia que resistir é vencer, quem tinha a determinação de acabar com a guerra, as mulheres e homens que se juntaram no 25 de Abril, fizeram da Revolução a mãe da democracia.
Revolução mestiça, na convergência entre os povos das colónias e o da metrópole.
Revolução corajosa, porque sabia que o inimigo estava no nosso próprio país e foi aqui que o veio vencer.
Revolução democrática, porque garantia as liberdades e queria a democratização social, essa modernidade que a todos assegura a igualdade de oportunidades, de direitos e de responsabilidades.
Revolução profunda, devastadora para o situacionismo, amesquinhante para essa elite conservadora, de tal modo que, passados 30 anos, tanta vingança depois, recuperada a zona da reforma agrária para coutadas, devolvidas empresas e capitais aos que rapidamente tinham fugido, e ainda os poderosos exigem a suprema vitória da confiscação da memória para conseguirem aquela certeza reconfortante que lhes falta de que a Revolução foi, não poderia ter sido e, portanto, tem de
acabar.
Como gostariam de comemorações vestidas de salamaleques anestesiantes, de fanfarras surdas, de vénias submissas, de liturgias espampanantes, do povo calado!
Como anseiam por um festim que «canibalize» a História, que lhe retire o ânimo, com um aniversário que desconsegue a Revolução – quanto mais velas menos vida, quanto mais anos mais nostalgia, quanto mais tempo menos urgência, sentenciam os normalizadores.
Manhosos, roubam a revolução letra a letra, para que pareça que tudo foi supérfluo, um exagero! Pois com certeza, a ditadura era mansa e chegaria o dia de se inclinar, domesticada, subsidiada, amigada com a Europa.
Um coro de velhos jovens revoltados, agora arrependidos e nobilizáveis, antigos heréticos, agora snobs, repete-nos que a Revolução é sempre demais. É necessariamente um aborrecimento, um susto, um Carnaval, e depois do Carnaval, como todos sabemos, vêm as cinzas. Construtores do passado, porque nada querem do futuro, contentam-se com um presente
eternamente repetido.
Ora, foi contra este espírito asilado, dormente, que se ergueu o voo do 25 de Abril, um levantamento de alma, uma explosão, uma explosão de vida – a revolução moderna.
As mulheres, que não se resignavam à obediência, os trabalhadores, que queriam o que era seu, direitos, dignidade , o que produzem, todos, a liberdade, o direito de informar, de criar, de saber, de discutir, de decidir, Portugal na Europa e no mundo.
Repete-se a censura do «excesso» desse tempo. Excessivo era o atraso, a apatia. Tínhamos a urgência de vencer meio século de ditadura, de uma ditadura instalada silenciosamente nas pessoas habituadas à subserviência, da dita que dominava todas as relações sociais: entre homens e mulheres, patrões e empregados, professores e alunos, velhos e novos.
Era uma tarefa quase impossível. Só uma revolução consegue o impossível.
Democratizar é isso mesmo: vencer uma ditadura em todos os seus lugares e em todos os seus tempos.
Que salto assombroso deu este país então! Se de algo nos podemos orgulhar no século XX é só desse momento fundador,
em que o passado de resistência ganhou o direito ao futuro e criou a democracia.
Foi uma revolução apaixonada, vivida como se fosse sempre, agora, o primeiro dia do resto das nossas vidas.
Que ninguém, por isso, se atreva a menorizar ou a desprezar essa ruptura. Os abrilistas, como os actuais adversários de
Abril, todos, só tivemos o direito de nascer nesse dia. E só nesse dia e a partir desse dia fomos grandes: foi o começo da revolução moderna, saindo do adormecimento sonambulesco em que o País estava mergulhado.
No País mais analfabeto da Europa, o saber do povo escreveu histórias de cultura.
No País que pouco conhecera de democracia, a revolução criou a liberdade.
No País ofuscado na imensidão do império pelos mares fora, reencontrámo-nos na Europa, onde vivemos.
Foi o 25 de Abril que nos permitiu viver.
Perguntar-nos-á, então, Antero, cerca de 100 anos depois, se as causas da decadência foram vencidas. Trinta anos
depois, perguntar-nos-á Abril se continuamos grandes, se somos mais europeus e mais abertos ao mundo, se vivemos mais justos, se, sendo justos, somos modernos.
É claro que nunca há respostas definitivas para as grandes perguntas. Porque como vivemos é como queremos viver e só saberemos se respondermos.
Mas sabemos que a revolução da modernidade do século XXI corre três riscos, os maiores, os de sempre: o fanatismo, o colonialismo e o absolutismo – as causas da decadência que já Antero conhecia mas que agora são só uma e a mesma.
Colonialismo e absolutismo renascem no Império, um poder absoluto sem lei, que estimula um muro do apartheid na Palestina, que desencadeia as novas guerras do petróleo, que trombeteia a guerra infinita, onde quiser, sempre que quiser, quando quiser. O primeiro e único império que procura justificações para uma guerra sanguinolenta depois de já a ter dado como terminada.
Colonialismo e absolutismo a que o Estado português se vergou, aceitando ceder homens e mulheres da GNR para se juntarem aos sipaios do Império na ocupação do Iraque, onde colapsa de desastre em desastre, de vítima em vítima.
Absolutismo, ainda, numa Europa em crise, governada por egoísmos mesquinhos, virada para Washington, esvaziada nas chancelarias que conspiram contra a democracia para imporem um directório, empobrecendo a cidadania que nos daria a dimensão europeia.
Pior: fanatismo e absolutismo, irmanados no horror económico em que as bolsas sobem sempre que os despedimentos crescem e em que as boas notícias das empresas são a desgraça para 0,5 milhões de desempregados em Portugal.
Absolutismo que renasce numa elite que continua à espera «do ouro do Brasil», desperdiçando fundos, pedindo sempre mais. Agora um novo rentismo com o negócio dos hospitais privados, das prisões privadas, da banca privada, da água privada, da electricidade privada, das pensões privadas, da imigração sem direitos.
Trinta anos depois, é assim que querem Portugal: um País sossegado, silencioso, um País de futebol. Um País que é um relvado, uma esplanada, um sítio, onde «uma mão lava a outra». Um País pequenino, que não incomoda e onde tudo se esquece.
É por isso que não quero vir aqui defender as conquistas de Abril. Isso seria pouco, demasiado pouco. Seria de menos.
Seria pensar no passado e desistir do futuro. Queremos, com a legitimidade de Abril, a liberdade que falta, a responsabilidade que escasseia, a justiça, que é a maior dívida de Portugal para consigo próprio.
Por isso, a elite conservadora de agora continua horrorizada com a mudança e governa o País como sabe: com aventuras coloniais, contando subsídios «atrás dos cortinados», querendo uma Europa sem exigência democrática e um País sonâmbulo.
Essa elite fracassou e essa elite precisa de ser derrotada; 30 anos depois, a tarefa moderna é vencê-la. Esse é o compromisso
do Bloco de Esquerda perante o 25 de Abril. É por isso que o saúdo. Viva a República! Viva o 25 de Abril! Viva
o socialismo!
Aplausos do BE, do PS, do PCP e de Os Verdes.

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